Canção do Engate

quinta-feira, março 06, 2008

O povo Dinka, no Sudão


A reportagem que vi hoje [5 Março] na RTP2, no National Geografic, sobre a cultura dos Dinka, no Sudão, foi reveladora da distância abissal que separa os povos ditos civilizados e as nações pobres.

De acordo com a Wikipedia:
«
The south also contains many tribal groups and many more languages are used than in the north. The Dinka, whose population is estimated at more than 1 million, are the largest of the many black African tribes of Sudan. Along with the Shilluk and the Nuer they are Nilotic tribes. The Azande, Bor, and Jo Luo are “Sudanic” tribes in the west, and the Acholi and Lotuhu live in the extreme south, extending into Uganda.
»
A reportagem incidia sobre a forma como aquela cultura, referida como milenar, encara o casamento, na actualidade.
As mulheres não podem escolher os maridos, não podem revelar os seus sentimentos perante o noivo, nem influenciar o noivado. Tudo é dispoletado pelo homem, numa sucessão de passos pré-determinados, numa lógica de arranjo. Arranjo na verdadeira acepção da palavra.
Vejamos: o homem manifesta o interesse aos seus pais, que por sua vez propõem à mãe da rapariga pretendida, numa reunião familiar de troca de impressões sobre o dote.
Começa bem. Focado no dote que o noivo terá que dar à família da rapariga para poder casar com ela.
Discute-se calmamente os termos do acordo, se será assim ou assado, se será um dote maior ou mais pequeno, mas em pormenor. Tipicamente é em géneros. No caso da reportagem a mãe da noiva confessava às câmaras, de forma peremptória, «a minha filha vale pelo menos 400 vacas.»
E depois explicava com uma naturalidade que me embaraçou, que as filhas eram uma forma de subsistência da família -- quantas mais, melhor. Pois é claro. Tin-tin por tin-tin, nem mas nem meio mas. Quatrocentas vacas. Que bonito número, que bonita alusão. Não havia ali trocadilhos, meias palavras, subentendidos. Para dar a mão da sua filha -- bem visto, não era só a mão, mas o seu consentimento para o casamento -- tinha que ser por uma boa quantidade de vacas.
A simplicidade, objectividade, e tantos mais adjectivos que não consigo aplicar, um discurso solene e compenetrado.
O homem viu-se à rasca para arranjar as ditas quatrocentas vacas, teve que pedir ajuda a amigos. No meio do nada, por entre escassas árvores, no meio da terra, à luz da chama de uma fogueira, trocavam pais e tios, avós e avôs, de um e de outro lado, argumentos negociais.
A filha era posta à margem desta negociação, deliberadamente.
No dia seguinte surgiram notícias de mais um pretendente, coisa que vinha complicar a tarefa do nosso criador de gado.
No meio de diversas peripécias, negociações prolongadas, saltaram por fim os familiares da noiva, aos gritos e danças de contente, que aceitavam a proposta do humilde criador de gado: cento e vinte vacas ao todo, que era tudo o que ele tinha conseguido arranjar.
Mas todo este dote reverteu, de acordo com a tradição, para os pais e avós da noiva, nem uma única vaca ficou para ela, ou ele.
Da cara dele, e dela, percebeu-se finalmente que se queriam um ao outro.

Será que temos algo parecido na nossa socidade, ou é apenas uma miragem? Caso tenhamos, será certamente de forma camuflada, mas nunca dita de forma clara.
«A minha filha vale mais de cem vacas» soaria a despautério, acto vagabundo, vil. Pelo contrário, na simplicidade dos Dinka, é a forma cultural milenar de início de vida. Começar sem casa nem bens, de regresso à aldeia natal, abandonando as vacas e profissão. Deixou de ser criador de vacas porque sem nenhuma ficou. Despojado de qualquer pertença. À mercê dos elementos.
De regresso à aldeia natal que o acolheria como agricultor.
Isto é por amor, sincero, claro, transparente.
Algo com o qual deveriamos aprender, e assim sair da nossa superioridade hipócrita.
Soa mal na nossa cultura, mas é talvez assim:
doei todas as minhas vacas para casar com quem amo.

1 Comments:

Blogger Nuno Fonseca said...

As vezes penso nisso - se não somos apenas cada vez mais ingénuos e se coisas que criticamos em culturas "menores" não permanecem de forma escondida nas nossas vidas, apesar de se terem tornado piores mais nocivas por menos controláveis e detectáveis que as coisas que as antecederam.

1:54 da manhã  

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